quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Construir uma biblioteca a partir de um quiosque

    Embora se continuem a vender livros com publicações de imprensa, o grande boom aconteceu há alguns anos atrás. Não sendo pioneira (pelo menos a Visão lançou duas colecções anteriores, das quais ainda hoje é normal encontrar exemplares para venda em feiras do livro), a colecção Mil Folhas do Público (2002) foi um marco neste tipo de iniciativas. Com uma primeira série de 30 volumes, acabou por se perpetuar durante um período de 2 anos, até atingir o número 100. A tiragem média das suas edições foi de 50 mil exemplares e incluiu títulos tão diversos como "O Nome da Rosa" de Umberto Eco, "Sinais de Fogo" de Jorge de Sena, ou "1984" de George Orwell. Disponibilizou inclusive, alguns livros que eram difíceis de encontrar no mercado português.

    Animados pelo sucesso da Mil Folhas, outros intervenientes tentaram recriar o modelo. Umas tentativas mais bem sucedidas que outras. O DN, por exemplo, lançou uma colecção com obras de diferentes Prémios Nobel. O próprio Público repetiu a receita com a colecção Geração, e muitas outras subsequentes, numa aposta que perdura até aos dias de hoje.

    A Banda Desenhada teve os seus 15 minutos de fama com a colecção completa das aventuras de Tintim e  Corto Maltese a 4€ cada volume. O segmento dos livros de arte foi fortemente promovido junto do público através da parceria Taschen/Público, que permitiu que dezenas dos seus títulos Basic Art chegassem aos quiosques a 4,50€. Posteriormente, esta parceria foi repetida na área de arquitectura. A revista Sábado lançou uma colecção de livros patrocinada por um banco (o patrocínio de uma entidade específica não é invulgar nestas colecções), sobre os mais famosos Museus do Mundo e as obras que albergam, que continham  reproduções de pinturas com uma qualidade invulgar para edições que rondavam os 13€. Lançaram-se números únicos sobre assuntos tão díspares como a obra gráfica de Paula Rego ou o conflito entre Israel e a Palestina. Ao longo dos anos, foram  contempladas áreas como a literatura, culinária, arte, viagens, BD, policiais e poesia, entre outras (com o cinema e o formato de DVD aconteceu um fenómeno semelhante).

    Muita gente manifesta desconfiança em relação a estas edições. Seja por desagrado perante a utilização de publicações periódicas para vender outros produtos, ou cepticismo quanto à qualidade de uma edição nestes moldes e preço. Cada um é livre de pensar o que quiser. Pessoalmente, foi a partir desse momento que a constituição da minha biblioteca sofreu um impulso irreversível. Possibilitou-me o acesso a preços acessíveis (até para um estudante sem grandes rendimentos na altura) a um vasto conjunto de obras e respectivos enquadramentos, o que contribuiu para solidificar um quadro de referências literárias. Foi uma oportunidade de conhecer muitos autores diferentes, representativos de correntes e períodos diversos. Descobri livros que normalmente não teria comprado, ou sequer ouvido falar.

Existem de facto exemplos em que a qualidade se ressente. Pode ser na encadernação, na mancha usada ou na qualidade da tradução. Mas uma grande parte da resistência advêm da mentalidade portuguesa. Se é barato não pode ser bom. E ainda hoje, os livros que se compram (a importância da novidade) e onde se compram, constituem muitas vezes um acto de afirmação.

Uma parte significativa das edições publicadas nestes termos, utilizam traduções cedidas pelas editoras que detêm os direitos para Portugal (facto que quando sucede, vem devidamente assinalado na ficha técnica ). São diferentes os direitos de autor para livros a vender em livrarias, e para comercialização com publicações periódicas, pelo que não podendo impedir a sua publicação, negociar os direitos de tradução é uma boa forma das editoras recuperarem parte do investimento.

    Houve algum tumulto como é costume nestas situações, com alguns livreiros e editores a acenarem com os perigos de desequilíbrio do mercado que estas edições trariam. É indeterminado o impacto das mesmas no mercado livreiro e editorial, visto que não são sectores que pugnem pela disponibilização de dados fidedignos. O preço das novidades parece ter-se mantido mais ou menos constantes. Mas o que se alterou, foi o preço a que eram vendidas edições mais antigas, até então praticamente insensível à data do seu lançamento. Verificou-se um crescimento das feiras de final de edição. Se as pessoas estavam receptivas a comprar livros que não eram novidades desde que por um preço mais baixo, porque não aproveitá-lo para rentabilizar livros que já haviam ultrapassado o seu período útil de mercado. Sobretudo numa altura em que a rotatividade de títulos nas livros aumentava a olhos vistos. É muito provável que tenha existido uma relação directa entre estas duas realidades.

    Com o tempo, houve uma saturação do mercado (muitas vezes, grande parte destes produtos é comprado por um público recorrente. E com o aumento da oferta, deixaram de constituir oportunidades tão irresístiveis). Começaram a sair menos colecções, e as que saíam tinham um custo cada vez mais elevado (passando a barreira psicológica dos 5€). Mas já tinham desmpenhado um importante papel. E não desapareceram completamente, continuando a surgir bons negócios. Um bom exemplo são as colecções que a revista Sábado tem lançado com uma incidência cada vez maior, em que por 1,5€ podemos conhecer obras de nomes como Roth, Allende ou Eco. E acrescentar mais uns títulos à biblioteca.

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