quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Metido no Chinelo

  Acabei de ver nas notícias, um dos melhores alunos do país reduzir o Ministro da Educação à condição de artista circense em meia dúzia de penadas. Acerca dos prémios de mérito que afinal não vão ser entregues aos alunos, mas sim às escolas a favor do princípio da solidariedade, aceita que se estes são assim tão importantes para ajudar o país, compreende a medida, e sugere que o mesmo seja feito relativamente aos prémios de mérito dos gestores público, para que esse propósito seja alcançado mais rapidamente. Embora ache que "o prometido é devido, ou pelo menos é esse o princípio que lhe foi ensinado em casa". É certo que falamos de um aluno de 19,5 valores, mas é ainda assim apenas um rapaz.

  Como muita gente parece ter tido a mesma educação, entre escolas, pais e mecenas diversos, são já vários os casos em que os prémios serão entregues de qualquer forma. É assim que vemos como certos valores não se compram no supermercado.

Um velho amigo

  Quando era mais novo, já lá vão quinze anos ou coisa que o valha, o DN jovem recebia e publicava textos de quem começava a experimentar com a sua necessidade de escrever. O lançamento recente de um livro sobre esse projecto, fez-me lembrar não só essas páginas, mas também um velho amigo. O Pedro era dotado, provavelmente além do limiar de génio. Recordo-me de ele ler e compreender no preparatório, obras que estão vedadas à generalidade das pessoas, até uma década mais tarde. Nalguns casos, sempre. Garanto-vos que não estou a exagerar. 
  De mãos dadas com esse talento, caminhava uma melancolia permanente. O seu corpo jovem parecia por vezes carregar um espírito muito mais velho que os anos que tinha. Como alguém desgastado pela vida. Não soube lidar com os primeiros desgostos de amor, as reflexões existenciais em que mergulhou, com a falta de finalidade da própria vida que acreditou encontrar. Pôs termo a tudo no topo do Viaduto Eduardo Pacheco, após ler as palavras do seu livro favorito, e ouvir a música que o marcava. Sei estes pormenores, porque vinham na despedida que o DN jovem lhe publicou, a par dos melhores textos que para lá tinha enviado, um recorte de jornal que guardo até hoje.

  Lembro-me da raiva e confusão que senti por tanto desperdício. Da tristeza e dor nos seus pais enquanto me abraçavam, eu que tinha entrado com o seu filho perdido no primeiro dia da escola primária. Ainda hoje o vejo, pois os caminhos que percorro podiam ser paralelos aos dele. Mas lembro-me sobretudo, da tristeza que senti por saber que nunca mais ia estar com o meu amigo. Nós, que andámos a recolher assinaturas e a falar na rádio de ecologia, decididos a salvar o planeta. E mesmo após todos estes anos, continuo a ter saudades do meu amigo.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Negócios de ocasião - só hoje

  A Fnac.pt tem durante o dia de hoje, um conjunto de 50 livros com 50% de desconto. De entre estes, destacam-se títulos como a Íliada e Odisseia (as edições da Cotovia, com tradução do original de Frederico Lourenço), os diferentes volumes de Em Busca do Tempo Perdido, ou ainda duas obras de Tony Judt. E destaco estes não apenas pelo seu valor literário, mas pelo seu elevado preço habitual (alguns rondam os 40€), que dificultam a sua compra. Quem tiver folga financeira, é de aproveitar.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Hoje é o primeiro dia do resto da História de Portugal

  Acabam de se realizar as eleições legislativas, num momento em que o país se encontra metido numa camisa de sete varas. Passos Coelho não foi a minha opção para desempenhar o papel de mal menor para Portugal. Vislumbro na sua postura tiques de autoritarismo, que aliados a ideias pouco consistentes para as políticas que pretende implantar, não me deixam particularmente optimista. E se digo particularmente, é porque sou essencialmente um optimista, e espero que melhores tempos se avizinhem. Que esteja tão enganado quanto for possível.

  A alternativa viável, José Sócrates, também deixava a desejar. Embora tenha sido confrontado com circunstâncias muito específicas, e anormalmente complicadas (a borrasca do BPN, a crise do sub-prime, e a actual crise que enfrentamos), e se tenha desenvencilhado razoavelmente (tanto quanto possível) das mesmas, fica a imagem de um líder comprovadamente autoritário, arrogante, e que sempre se caracterizou pela evidência da aparência em detrimento do conteúdo. Ficam igualmente algumas situações mais dúbias, que nunca foram completamente clarificadas (aquele diploma ao domingo, Freeport, alteração da lei penal com efeitos à medida do caso Casa Pia, ou outros que envolvessem políticos). O seu melhor argumento nestas eleições, era simultaneamente o seu calcanhar de Aquiles: se estava a par e passo com a situação concreta do país, e da melhor forma de aplicar as reformas negociadas com a troika com maior celeridade, é porque já lá estava, e constituiu também ele parte do problema. É uma questão de escolher entre o mal que se conhece, e o mal que se desconhece. Abona a seu favor ter ido a votos, e não ter saído de mansinho, num país em que as grandes figuras são muitas vezes candidatos apenas em caso de vitória provável.

  Para trás ficam rábulas como as de Fernando Nobre (creio que nunca vi alguém gozar de tanto crédito junto do público, e tão rápido o desbaratar), as farófias, a percentagem africana de cada candidato, as novas oportunidades de ignorância, ou de como se deve negar a responsabilidade pelos erros até ao fim, qual marido adúltero. Para trás, fica também uma campanha em que não se discutiu o fundamental neste momento: como vão ser aplicadas concretamente as medidas do memorando (inevitavelmente, a maior parte do próximo programa governativo), e como se vão reflectir nos bolsos dos portugueses. Porque discutir ideais é muito bonito (e importante), mas as contas para pagar são certas.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

E o ano começa bem...






   Ano novo, livros novos. Já cá cantam os primeiros novos residentes de 2011 (mês de Janeiro). Com o tempo tenho tido tendência a comprar progressivamente menos livros. Mais do que os constrangimentos financeiros que variam consoante as alturas (e que encontram inevitavelmente a resposta no ditado popular que diz que quem não tem dinheiro, não tem vícios), prende-se com o tempo que não chega para tudo. Acaba por ser natural cingir-me cada vez mais aos livros que quero mesmo, mesmo ler. 

  Começou com uma prenda de Natal atrasada: 501 Must Visit Natural Wonders, de um amigo que achou por bem alimentar o meu fetiche por viagens. Grande parte dos lugares que nos dá a conhecer não são de  visita viável, excepto se a nossa vida for viajar, e tenhamos bolsos bem fundos para o fazer. Mas vale a pena ver as fotografias, de qualidade bastante razoável, de como existem belezas na Terra que suplantam a nossa imaginação. 

  Nos CTT (uma primeira vez para mim), apanhei O Declínio do Império Whiting, de Richard Russo, a metade do preço. Foi uma compra por instinto, coisa que não é rara em mim. Gostei da pinta do livro. E fui influenciado pelo facto desta obra ter sido adaptada pela HBO, e protagonizada por Ed Harris, Helen Hunt e Paul Newman. Se cativou o interesse destes actores, sobretudo Newman (que nessa altura já não saía de casa por qualquer coisa), e para mais, já foi o vencedor do prémio Pulitzer, parece promissor quanto baste.

  Finalmente, nas oportunidades Fnac, aproveitei para dar baixa em quatro livros da minha lista de "Mais cedo ou mais tarde, hei-de caçar-te". Norte de Céline, autor conhecido tanto pela sua mestria literária, como pelo facto de ter sido colaboracionista nazi. O seu nome continua a ser sinónimo de polémica em França, numa altura em que se questiona novamente a importância que se deve atribuir à sua obra. A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao sempre me pareceu um livro divertido, e no ano do seu lançamento foi louvado quanto baste pela crítica (embora seja verdade que por vezes isso não significa assim tanto). A História Universal da Destruição dos Livros é uma tentação para apaixonados pelos  livros e pela seu percurso na história. Qual Mark Twain, as notícias da morte do livro sempre foram exageradas. Mas não por falta de tentativas. Esta forma de consagrar experiências, ideais e pensamentos, em simples páginas de papel, tem suscitado o ódio e receio de diversos regimes ao longo dos tempos. É interessante ver como existe uma conexão entre a destruição de livros e a censura e repressão, e a que proporções esta pode ascender.

  E para último deixo o melhor: Orlando Furioso, de Ludovico Aristo. Deixo a sinopse oficial, que é bem elucidativa do que se pode esperar. Acrescento apenas que a edição é um verdadeiro mimo; um prazer pelo próprio objecto em si, enriquecido com as ilustrações de Gustave Doré. Vale bem a pena os 40€ que custa normalmente. Com as Feiras do Livro a caminho, onde tem muitas vezes um desconto de 40%, talvez esteja aí a oportunidade ideal para quem quiser acrescentar este calhamaço ao seu espólio literário. 

Sinopse

Mais de 400 ilustrações de Gustave Doré.
Introdução, tradução do original, notas e resumo por Margarida Periquito.
A Cavalo de Ferro orgulha-se de apresentar ao leitor português a primeira tradução integral de ‘Orlando Furioso’ de Ludovico Ariosto, suprindo uma lacuna editorial no nosso país de mais de 500 anos. Com a presente publicação torna-se finalmente acessível em português uma das mais importantes obras da literatura universal, enriquecendo o nosso panorama literário e cultural.
Escrito ao longo de mais de trinta anos por Ludovico Ariosto e publicado na sua versão final em 1532 (com 46 cantos e cerca de 40.000 versos rimados), o ‘Orlando Furioso’ é um dos maiores monumentos da literatura europeia e mundial, apenas comparável em termos de relevância cultural a outras obras-primas da literatura como ‘A Divina Comédia’ (Dante Alighieri), ‘Gerusalém Libertada’ (Torquato Tasso), ou aos nossos ‘Lusíadas’, do qual, aliás, foi influência maior.
Misto de romance de cavalaria que engloba o imaginário popular e mitológico, numa fina ironia, o ‘Orlando Furioso’ é um longo poema épico que, tal como a Odisseia ou a Ilíada, pode facilmente ser lido como um grande romance de aventuras. Foi, aliás, leitura de entretenimento ao longo dos séculos em todas as cortes europeias, influenciando gerações de escritores como o inglês Spencer ou o espanhol Cervantes, estando ainda presente em obras tão distantes no tempo e diferentes no estilo como as de Camões e de Cyrano de Bergerac.
O tema principal do livro é de como o valoroso cavaleiro Orlando, de paladino de Carlos Magno e enamorado da bela Angélica, por ciúme, se torna em louco furioso, e de como sem o seu mais importante cavaleiro o exército cristão fica em dificuldades na guerra santa que trava; isto até o cavaleiro Astolfo encontrar na Lua o recipiente que contém o juízo de Orlando restituindo-o ao seu legítimo proprietário, mesmo a tempo deste ajudar os cristãos na luta que travam contra mouros nos muros de Paris.
Pelo meio desfilam cavaleiros, cavalos alados, princesas, feiticeiros, e são descritas um sem número de batalhas, duelos, fugas, perseguições e cenas de amor; tudo isto num ritmo alucinante que a rima dos versos de Ariosto torna numa quase prosa musical.
A tradução do século, numa edição a não perder!
Orlando Furioso de Ludovico Aristo


Críticas de imprensa
«Não se pode ficar indiferente à tradução integral do poema épico de Ariosto, Orlando Furioso (1532), acabada de publicar sob responsabilidade de Margarida Periquito, tradutora de Leopardi, Buzzati, Romana Petri, Carlo Collodi e outros italianos. Orlando Furioso são cerca de quarenta mil versos no padrão rimático e métrico da oitava, distribuídos por 46 cantos. Da obra, Harold Bloom disse ser o precursor e modelo do Quixote. A edição, de apuro gráfico cuidado, sem luxo, em papel reciclado e grande formato (27cmx19cm), não é bilingue. Por essa razão, fica-se pelas 749 páginas. Margarida Periquito traduziu, explicou o critério do seu trabalho, e escreveu a introdução, uma nota biográfica do poeta (1474-1533), o resumo da obra e as indispensáveis notas. A editora Cavalo de Ferro optou por ilustrar a sobrecapa e o volume com cerca de quinhentas das 650 ilustrações que Gustave Doré fez para este clássico do romance de cavalaria, o que decerto constitui atractivo suplementar.»
Eduardo Pitta, daliteratura.blogspot.com 


«Uma tradução apuradíssima em todos os pormenores.»
J.R.D., Público 


  Alguns destes títulos continuam a manter os preços previstos na campanha Fnac, embora esta já tenha terminado. Em alguns casos, são mesmo os novos preços de editor dos livros em questão, pelo que se devem manter.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Tá na hora, da caminha, vamos lá dormir

  Diz-me o Google que o Vitinho faz hoje 25 anos. E a mim, isso faz-me sentir como o tempo passa depressa. Ainda me lembro de andar na primária quando o Vitinho apareceu, e como a sua chegada significava ordem de marcha para lavar os dentes e deitar. Se um dia tiver filhos, esta há-de ser uma daquelas memórias do tempo em que o pai era da idade deles, que vou querer mostrar.



terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Neta do Senhor Linh - Philippe Claudel

 
  O Senhor Linh, numa idade em que já pouco esperava da vida além de alguma serenidade e carinho, vê-se forçado a procurar refúgio em França. Para trás ficam a sua casa e aldeia, e o seu filho e nora, ambos mortos pela guerra. Para trás fica tudo aquilo que alguma vez conheceu. Ou quase tudo. Consigo viaja a sua neta, ainda apenas um bebé que depende de si para tudo, e que é a única razão porque encontra forças para continuar. Mas se nesse propósito encontra a força para enfrentar o dia seguinte, é numa improvável amizade que encontrará o alento para superar o desespero que este sempre traz. Para Linh e Barker, o homem de aspecto gentil que conheceu, uma só pessoa, e com a qual não partilham sequer um idioma comum, foi o bastante para fazer a diferença.

  A escrita de Claudel é emocional sem incorrer em excessos melodramáticos, uma tentação muitas vezes presente neste tipo de narrativas. Mergulha-nos na realidade de um homem que cruza em si os dramas de um refugiado, e do estigma e condescendência que uma sociedade desenvolvida reserva aos que entraram no ocaso da vida. Coloca-nos no outro lado do espelho, em que vestimos a pele de um velho alienado que sente já não ter lugar no mundo, ou sequer conseguir comunicar com os seus habitantes. O que para nós é um facto óbvio, para alguém nas suas circunstâncias apresenta-se como um enigma cruel. E Claudel fá-lo através de uma estrutura narrativa que começa pelas páginas estritamente indispensáveis à contextualização da vida de Linh, dedicando-se então de forma mais demorada à exploração do nascimento e evolução de um vínculo de amizade entre dois homens magoados pela vida, enquanto acompanha paralelamente o dia-a-dia de Linh no centro de refugiados e o seu destino posterior, até culminar num clímax que nos conduz a uma percepção diferente da vida daquele ancião. Esta forma contida de contar a estória, acaba por amplificar o impacto das palavras do autor sobre amizade, solidão, mágoa e esperança. São cerca de 90 páginas que provam que os livros não devem ser avaliados pelo seu tamanho, e que conseguem provocar fortes sentimentos.

  Philippe Claudel, para além de escritor premiado com prémios como o Goncourt e Renadout, é Mestre de Conferências da Universidade de Nancy, professor no Instituto Europeu de Cinema e Audiovisual, e desde 2008, também realizador, com o filme Il ya longtemps que je t’aime. É editado em Portugal pela ASA.

Classificação: 8/10
 
Título: A Neta do Senhor Linh 
Autor: Philippe Claudel
Editor: Edições Asa
Edição/reimpressão: 2006
Páginas: 96

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Negócios de ocasião - Janeiro na FNAC

  Os preços mínimos da Fnac estão de regresso, e são alguns os livros interessantes que se podem comprar por preços mais em conta do que é habitual. Em alguns casos, o preço já havia descido anteriormente pelo que o desconto pode não ser tão significativo quanto isso. Ficam alguns exemplos dos que mais me chamaram a atenção. 

 A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao - Junot Diaz

O Cantor de Tango - Tomas Eloy Martinez

O Mar - John Banville

A Casa de Campo - José Donoso

Orlando Furioso - Ludovico Ariosto

A Saga de Gösta Berling - Selma Lagerlof

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Temos pena...(2)

  ...que o fórum do Estante dos Livros vá encerrar já a partir do final do mês. Vai continuar online, mas não será possível fazer novos posts. A Célia (provavelmente mais conhecida por Canochinha), cujo entusiasmo suportava praticamente sozinho esse espaço, não tem mais o ânimo ou tempo necessários para continuar o projecto. Resta agradecer-lhe, dar os parabéns pela qualidade de um espaço que soube conquistar o seu lugar, e alimentar a esperança de que se as circunstâncias se alterarem, este possa um dia regressar. E mesmo que saiba a pouco, podemos continuar a acompanhar a sua paixão pelos livros no blog que lhe deu o nome.

Temos pena...

  ... de não poder frequentar o Curso de Gestão de Projectos Editoriais que os Booktailors vão ministrar durante os meses de Fevereiro e Março. Parece interessante para quem pretenda ter uma visão global do processo de edição, nomeadamente os aspectos técnicos da mesma. Mas como não é a primeira vez que o organizam, muito provavelmente também não será a última. Talvez na próxima vez.

  Para além de interesse no conteúdo do mesmo, tenho curiosidade em saber até que ponto o mercado editorial valoriza, em concreto, os cursos organizados pelos Booktailors: convictos da sua utilidade ao ponto de serem relevantes na selecção de funcionários; numa perspectiva formativa complementar mas de importância moderada; ou se simplesmente não os valoriza de todo?

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O Desertor - Daniel Silva

 
   O Desertor é a mais recente aventura protagonizada por Gabriel Allon, o espião israelita criado por Daniel Silva, a ser publicada em Portugal. Os acontecimentos que descreve vêm no imediato seguimento do volume anterior, As Regras de Moscovo, em que o seu antagonista foi o traficante de armas Ivan Kharkov. Grigori Bulganov, o homem que por duas vezes salvou a vida de Allon na Rússia, desaparece do seu exílio britânico. Descrente na possibilidade de que o tenha feito voluntariamente, e motivado pela promessa que lhe fez de que não acabaria morto e desfigurado numa vala anónima (punição tradicionalmente reservada aos traidores na Rússia), o espião/restaurador de arte, abandona, uma vez mais, o seu retiro na Úmbria para tentar salvar o amigo.

  Sem grandes dúvidas de estar perante a vingança de Kharkov, Allon sabe igualmente que será uma questão de tempo até ser alvo da mesma. Os seus actos possibilitaram o desmoronar da rede de tráfico de armas de Kharkov, o roubo de uma substancial parte da sua fortuna, e mais importante, a fuga da sua mulher e filhos. Gabriel tenta descortinar as circunstâncias que rodearam o desaparecimento de Bulganov,  na esperança de achar a ponta do novelo que o leve até ao seu cativeiro. Mas quando falha em proteger Chiara, a sua mulher, vê-se forçado a tomar medidas extremas (e a desfazer-se de alguns escrúpulos), para evitar que se repita a sua história pessoal (o atentado que vitimou o seu filho e a sua primeira mulher, é um dos elementos estruturantes do perfil psicológico da personagem).

  Os enredos e mecanismos narrativos utilizados por Daniel Silva pouco ou nada acrescentam aos títulos anteriores. É mais do mesmo. Mas feito com a competência habitual. Os apreciadores de Gabriel Allon não sairão desapontados, mas é melhor não esperar muito além de um elemento de continuidade. O próprio desenlace não consegue escapar a essa monotonia, embora chegue a alimentar essa expectativa. É no entanto uma obra que se centra mais na vertente pessoal de Allon, visto que é sobre si, e não Israel, que recaem todos os perigos. É na evolução pessoal do protagonista, e das suas relações com um conjunto de velhos conhecidos cada vez mais recorrentes (Shamron, Seymour, Bancroft, Carter, Navot, entre outros), que se notarão os maiores desenvolvimentos, pelo que se torna tão mais relevante conhecer os antecedentes dos mesmos. Por esse motivo, bem como o facto de ser uma continuação directa da história anterior, será talvez a pior escolha possível para um primeiro contacto com esta série. 

  Daniel Silva aborda através da sua ficção a promiscuidade que actualmente existe na Rússia (em que o apoio do Governo a um criminoso como Kharkov seria perfeitamente normal, desde que acarretasse lucro), e de como este estado de coisas é directamente conexo ao percurso económico e social de antigos quadros da KGB (como é o caso de Vladimir Putin). Opressão e corrupção são as duas constantes num país em que a actividade jornalística é descrita como uma das mais perigosas profissões do mundo. Casos como os de Alexander Litvinenko e Anna Politkoyskaya são evocados directamente, ou através de personagens que se encontram em contextos similares. 

  Fica-se a aguardar a edição nacional do livro seguinte da série, The Rembrandt Affair, sendo que está prometido para meados de 2011 o lançamento do 11º volume da mesma, Portrait of a Spy. Talvez um deles traga resposta à minha suspeita de que Allon mais não seja que o ramo judaico da família de Jack Bauer.

Classificação: 7,5/10

Título: O Desertor
Autor: Daniel Silva
Editor: Bertrand Editora
Edição: 2010
Páginas: 448

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Aquisições de Dezembro

  Em Dezembro permiti-me um desvio à contenção orçamental do momento. Afinal de contas, era Natal! No Freeport, comprei pela exorbitante quantia de 5€ cada os quatro livros que de seguida se enumeram: Cavalos Roubados de Per Peterson; O Cavalo a Tinta-da-China de Baptista-Bastos; Planisfério Pessoal de Gonçalo Cadilhe, e História do Cerco de Lisboa de José Saramago. Comprei-os na semana que mediou entre o Natal  e o Ano Novo. Havia muitos outros títulos interessantes a preços em conta. Que me recorde: O Jogo do Anjo e A Sombra do Vento de Carlos Ruiz Záfon a 10€ cada; O Homem Duplicado de José Saramago a 5€; diversos títulos de António Lobo Antunes (edições ne varietur) a 8€ a peça; O Fantasma de Hitler de Norman Mailer por 8€, entre outros. Quem passar por Alcochete e quiser aliviar um pouco a carteira, é dar uma espreitadela.

  Mesmo com os amigos e entes queridos a reduzirem nas prendas de Natal (exemplo seguido pela malta cá de casa), ainda apanhei dois livros: Caderneta de Cromos de Nuno Markl, e o Sonho do Celta de Mario Vargas Llosa.

  Para encerramento das hostilidades e condigna celebração do final de 2010, satisfiz dois dos maiores desejos da lista de compras futuras. O Desertor de Daniel Silva, e a Literatura Nazi nas Américas de Roberto Bolãno, já repousam orgulhosamente na minha estante.







quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Leituras do ano que passou

  Durante 2010 não houve lugar a listas de leituras ou compras. Não saberia recitar de memória a maior parte dos livros que li no ano passado, e acerca de muitos ficaria na dúvida se os li nesse ou outro ano. Mas algumas leituras marcaram os doze meses anteriores pelos mais diferentes motivos: 

  Somos o Esquecimento que Seremos e Não Matem a Cotovia, por conseguirem captar em palavras algo de nobre do ser humano. E por o fazerem com genuinidade, sem recorrerem a exageros narrativos ou descritivos. Fortemente baseados nas experiências pessoais dos próprios autores, ambos nos conduzem pela importância do amor entre um pai e os seus filhos; e de como quando este é um bom homem, se torna a medida pela qual os seus sucessores se avaliarão. Mostra-nos igualmente que tentar fazer o que achamos certo nem sempre conduz a um final feliz; e porque ainda assim muitos acreditam valer a pena viver segundo esses princípios.  

  Shantaram, uma obra auto-biográfica romanciada, porque a vida de Gregory David Roberts é um daqueles casos em que a realidade supera a ficção. Maioritariamente passado na Índia, existe de tudo um pouco nesta odisseia: violência, miséria, crime, amor, obsessão, e algumas personagens memoráveis. Roberts guia-nos através do submundo de Bombaim ao longo de 900 páginas, e apesar da sua extensão, é com tristeza que chegamos à última página. O adágio "toda a gente tem um livro dentro de si" surgiu devido a casos assim.
  D. Amélia pela surpresa que constitui para mim. Lido por recomendação, confesso que contrariei os meus preconceitos (uns fundados, outros nem por isso) acerca de alguns autores portugueses, nomeadamente no que ao registo de romances históricos se refere. Instigado pelo alarido acerca do regicídio, proporcionou-me uma perspectiva interessante sobre o período final da monarquia em Portugal. Não uma perspectiva imparcial, ou o mais completa possível. Mas antes humana, que tenta recriar os estados de alma de uma das suas principais intervenientes.

  Uma conspiração de estúpidos fez-me ir às lágrimas de tanto rir. Não imaginava ao ler as primeiras páginas, embora cómicas, que pelo final do livro teria mergulhado num mundo em que a idiotice é o valor dominante e surge instituída de uma simetria que pauta a existência do mesmo. O epicentro, e simultaneamente expoente máximo deste, é Ignatius Reilly, uma das personagens mais geniais que conheci. Sem ser imbecil no sentido mais clássico do termo, funciona numa frequência que é diferente do resto da humanidade, e lhe confere a capacidade de conduzir quem o rodeia à insanidade. O prazer da leitura foi tanto maior, porque já conheci o meu Ignatius (embora na versão feminina), e sei agora que estas pessoas, embora raras, existem mesmo fora da ficção. E sim, mesmo quando têm um excelente coração, possuem o condão de nos levar à loucura.

  Compreende-se porque é que As Memórias Póstumas de Brás Cubas é considerado por tantos uma das maiores obras primas da literatura brasileira e da ficção escrita em português. Não vou mencionar a história que conta porque não é o que mais importa. O que importa é que Machado de Assis tem um tal dom para a escrita, que se tivesse escrito sobre o acto de cortar as unhas, muitos teriam lido essa prosa com gosto (o próprio incluído).

  Por último, Contos Completos I de John Cheever que me encheu as medidas. Não é raro perdurar após a leitura de contos a sensação de lamento por as ideias que abordam não terem sido mais desenvolvidas. John Cheever consegue a quase perfeição entre o tamanho do conto e o que precisava ser dito. Consegue captar o espírito de uma época da América, através do mosaico que este conjunto de contos (todos no mesmo registo) nos apresenta. Perdura o travo de que a caneta do autor foi pousada nem uma palavra a mais ou a menos antes.

  A memória privilegia as leituras mais recentes, pelo que muito provavelmente outras obras igualmente marcantes ficaram esquecidas. Mas pouco importa em que ano um bom livro tenha sido lido. Importa que tenha sido lido.