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sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O Filho Eterno - Cristóvão Tezza


  O livro escrito por Cristóvão Tezza, cruza romance com um testemunho auto-biográfico, de quem  vê o seu projecto de vida embater na realidade de um filho atrasado. E se utilizo a palavra atrasado, não o faço de ânimo leve ou ofensivamente, mas porque é como o próprio autor o encara muitas vezes. Se quisermos ser honestos, é como uma grande parte de nós, ainda que sem necessariamente com uma malícia consciente, se refere por vezes às pessoas com síndrome de Down.

  A escrita de Tezza transpira genuinidade, porque coloca em palavras os sentimentos e pensamentos politicamente incorrectos, e até mesmo cruéis, que alguém na sua posição normalmente sente mas não admite. Um filho que nunca será verdadeiramente autónomo, é um empecilho no dia-a-dia de qualquer pessoa. Torna-se mesmo o escape para a frustração que deriva da não concretização dos objectivos mais megalómanos de cada um; aqueles de que normalmente ficamos aquém de qualquer forma. Não é fácil evitar ter raiva, ou mesmo ódio, da criatura que nos prende a esse destino.

  O livro é uma jornada por diversos estados de espírito. Uma esperança inicial de que foi um engano, porque afinal os erros acontecem. Negação do que essa realidade acarreta, e finalmente a resignação de que resta fazer o melhor que se consegue, durante uma vida inteira. Porque não haverá uma solução mágica; uma epifania digna de livros de auto-ajuda que nos revela como estamos perante uma bênção disfarçada. Não, é mesmo uma merda, e sempre será. Mas é também o nosso filho. E o caminho para conseguir estabelecer uma comunicação com alguém que tem um quadro mental tão diferente, e estabelecer afinidades, pode ser penoso. 

  A vergonha de partilhar e admitir publicamente essa parte da sua vida, bem como o desejo sempre presente de um filho normal, um pouco mais normal que fosse, perpassam a cada página do romance. A escrita de Tezza é crua, desviando-se desse registo apenas quando envereda por referências culturais (importantes na medida em que nos dá a conhecer o contexto do narrador e o profundo significado que este atribui às mesmas). Mas nada de excessos melodramáticos. 

  Apesar de muito bem escrito tecnicamente, não me identifiquei com a escrita do autor, o que se reflectiu numa falta de empatia, e a espaços levou mesmo a uma leitura maçadora. Mas vale bem a pena que se lhe dê uma hipótese, até porque é o tipo de obra cujo prazer da leitura está intimimamente ligado às particularidades da personalidade de cada um.

Classificação: 7/10

Título: O Filho Eterno
Autor: Cristóvão Tezza 
Páginas: 238
Edição/reimpressão: 2008
Editor: Gradiva Publicações
Prémios: Prémio Jabuti 2008 / Prémio Portugal Telecom 2008
 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Neta do Senhor Linh - Philippe Claudel

 
  O Senhor Linh, numa idade em que já pouco esperava da vida além de alguma serenidade e carinho, vê-se forçado a procurar refúgio em França. Para trás ficam a sua casa e aldeia, e o seu filho e nora, ambos mortos pela guerra. Para trás fica tudo aquilo que alguma vez conheceu. Ou quase tudo. Consigo viaja a sua neta, ainda apenas um bebé que depende de si para tudo, e que é a única razão porque encontra forças para continuar. Mas se nesse propósito encontra a força para enfrentar o dia seguinte, é numa improvável amizade que encontrará o alento para superar o desespero que este sempre traz. Para Linh e Barker, o homem de aspecto gentil que conheceu, uma só pessoa, e com a qual não partilham sequer um idioma comum, foi o bastante para fazer a diferença.

  A escrita de Claudel é emocional sem incorrer em excessos melodramáticos, uma tentação muitas vezes presente neste tipo de narrativas. Mergulha-nos na realidade de um homem que cruza em si os dramas de um refugiado, e do estigma e condescendência que uma sociedade desenvolvida reserva aos que entraram no ocaso da vida. Coloca-nos no outro lado do espelho, em que vestimos a pele de um velho alienado que sente já não ter lugar no mundo, ou sequer conseguir comunicar com os seus habitantes. O que para nós é um facto óbvio, para alguém nas suas circunstâncias apresenta-se como um enigma cruel. E Claudel fá-lo através de uma estrutura narrativa que começa pelas páginas estritamente indispensáveis à contextualização da vida de Linh, dedicando-se então de forma mais demorada à exploração do nascimento e evolução de um vínculo de amizade entre dois homens magoados pela vida, enquanto acompanha paralelamente o dia-a-dia de Linh no centro de refugiados e o seu destino posterior, até culminar num clímax que nos conduz a uma percepção diferente da vida daquele ancião. Esta forma contida de contar a estória, acaba por amplificar o impacto das palavras do autor sobre amizade, solidão, mágoa e esperança. São cerca de 90 páginas que provam que os livros não devem ser avaliados pelo seu tamanho, e que conseguem provocar fortes sentimentos.

  Philippe Claudel, para além de escritor premiado com prémios como o Goncourt e Renadout, é Mestre de Conferências da Universidade de Nancy, professor no Instituto Europeu de Cinema e Audiovisual, e desde 2008, também realizador, com o filme Il ya longtemps que je t’aime. É editado em Portugal pela ASA.

Classificação: 8/10
 
Título: A Neta do Senhor Linh 
Autor: Philippe Claudel
Editor: Edições Asa
Edição/reimpressão: 2006
Páginas: 96

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O Desertor - Daniel Silva

 
   O Desertor é a mais recente aventura protagonizada por Gabriel Allon, o espião israelita criado por Daniel Silva, a ser publicada em Portugal. Os acontecimentos que descreve vêm no imediato seguimento do volume anterior, As Regras de Moscovo, em que o seu antagonista foi o traficante de armas Ivan Kharkov. Grigori Bulganov, o homem que por duas vezes salvou a vida de Allon na Rússia, desaparece do seu exílio britânico. Descrente na possibilidade de que o tenha feito voluntariamente, e motivado pela promessa que lhe fez de que não acabaria morto e desfigurado numa vala anónima (punição tradicionalmente reservada aos traidores na Rússia), o espião/restaurador de arte, abandona, uma vez mais, o seu retiro na Úmbria para tentar salvar o amigo.

  Sem grandes dúvidas de estar perante a vingança de Kharkov, Allon sabe igualmente que será uma questão de tempo até ser alvo da mesma. Os seus actos possibilitaram o desmoronar da rede de tráfico de armas de Kharkov, o roubo de uma substancial parte da sua fortuna, e mais importante, a fuga da sua mulher e filhos. Gabriel tenta descortinar as circunstâncias que rodearam o desaparecimento de Bulganov,  na esperança de achar a ponta do novelo que o leve até ao seu cativeiro. Mas quando falha em proteger Chiara, a sua mulher, vê-se forçado a tomar medidas extremas (e a desfazer-se de alguns escrúpulos), para evitar que se repita a sua história pessoal (o atentado que vitimou o seu filho e a sua primeira mulher, é um dos elementos estruturantes do perfil psicológico da personagem).

  Os enredos e mecanismos narrativos utilizados por Daniel Silva pouco ou nada acrescentam aos títulos anteriores. É mais do mesmo. Mas feito com a competência habitual. Os apreciadores de Gabriel Allon não sairão desapontados, mas é melhor não esperar muito além de um elemento de continuidade. O próprio desenlace não consegue escapar a essa monotonia, embora chegue a alimentar essa expectativa. É no entanto uma obra que se centra mais na vertente pessoal de Allon, visto que é sobre si, e não Israel, que recaem todos os perigos. É na evolução pessoal do protagonista, e das suas relações com um conjunto de velhos conhecidos cada vez mais recorrentes (Shamron, Seymour, Bancroft, Carter, Navot, entre outros), que se notarão os maiores desenvolvimentos, pelo que se torna tão mais relevante conhecer os antecedentes dos mesmos. Por esse motivo, bem como o facto de ser uma continuação directa da história anterior, será talvez a pior escolha possível para um primeiro contacto com esta série. 

  Daniel Silva aborda através da sua ficção a promiscuidade que actualmente existe na Rússia (em que o apoio do Governo a um criminoso como Kharkov seria perfeitamente normal, desde que acarretasse lucro), e de como este estado de coisas é directamente conexo ao percurso económico e social de antigos quadros da KGB (como é o caso de Vladimir Putin). Opressão e corrupção são as duas constantes num país em que a actividade jornalística é descrita como uma das mais perigosas profissões do mundo. Casos como os de Alexander Litvinenko e Anna Politkoyskaya são evocados directamente, ou através de personagens que se encontram em contextos similares. 

  Fica-se a aguardar a edição nacional do livro seguinte da série, The Rembrandt Affair, sendo que está prometido para meados de 2011 o lançamento do 11º volume da mesma, Portrait of a Spy. Talvez um deles traga resposta à minha suspeita de que Allon mais não seja que o ramo judaico da família de Jack Bauer.

Classificação: 7,5/10

Título: O Desertor
Autor: Daniel Silva
Editor: Bertrand Editora
Edição: 2010
Páginas: 448

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Somos o Esquecimento que Seremos - Hector Abad Faciolince


  Somos o Esquecimento que Seremos é uma revisitação da relação de Hector Abad Faciolince com o seu pai. Únicos homens numa casa de mulheres, Hector Abad Gomez e o filho cedo estabeleceram uma ligação próxima. Um médico que dedicou a quase totalidade da sua vida a tentar transformar o seu país num lugar melhor (acabando por pagar com a própria vida essa escolha), Abad foi a figura de referência no crescimento do filho. Apologista de que o amor deve ser a base de toda a educação (postura encarada como permissiva na altura), é-nos descrito como essa convicção moldou a personalidade do autor. A sua postura cívica desde cedo lhe valeu o rótulo de indesejável em vários sectores, numa Colômbia que começava a resvalar para uma situação de conflito e violência constantes. 

  Parte carta de amor aquele que foi o seu ídolo de toda a vida; parte testemunho do trabalho deste em prol dos direitos humanos, este livro demorou vinte anos a ser escrito. Foi esse o tempo que o autor precisou para colocar em palavras todo um tumulto de emoções e recordações, tanto as ternas como as amargas, em palavras. Sem cair num tom melodramático que queria a todo o custo evitar, a sua escrita é desarmante de tão simples. Transmite a nobreza de carácter do seu pai, sem no entanto esconder o excessivo lirismo de que frequentemente padecia. Partilha connosco as perdas que moldaram a sua família, deixando dolorosamente presente como algumas feridas nunca sararam, nada mais restando senão aprender a viver com a dor infligida. Na fase final do livro, de cariz mais factual, é assustadora a percepção que adquirimos de quão pouco podia valer a vida na Colômbia, sendo o assassinato dos que se opunham às forças governamentais natural e metódico. Mesmo sabendo o que lhes estava reservado, muitos houve que continuaram a lutar pelo acreditavam ser correcto. Abad Faciolince Abad, ainda que a achando para além de si, admira e consagra por escrito essa coragem.

  Caracterizado na sua sinopse como "um livro de grande coragem", esta qualificação não podia ser mais adequada para uma obra que expõe tanto do seu autor, e o obriga a lidar com os seus fantasmas pessoais. Escrito pelas regras de um romance, este título que deve o seu nome a um verso de Borges, foi recentemente reeditado pela Quetzal.

Classificação: 9/10

Título: Somos o Esquecimento que Seremos
Autor: Hector Abad Faciolince
Tradução: Margarida Amado Acosta
Editor: Quetzal
Páginas: 336

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O Retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde


  Dorian Gray é um jovem de feições extremamente belas, em quem o pintor Basil Hallward encontra a inspiração para realizar a sua melhor obra. Mais do que inspiração, Basil encontra em Dorian um objecto de verdadeiro fascínio. Mas apesar da devoção que lhe é dedicada por Basil, até conhecer o amigo deste, Lord Henry Bottom, Dorian não tem noção da real extensão do seu encanto. Os comentários acintosos de Lord Henry, para além de o despertarem para a sua perfeição física, plantam em si a semente de que na vida nada mais importa do que a beleza e o prazer. O típico dandy, Lord Henry é um cínico, apreciador dos prazeres mundanos e apologista apenas dos valores que sirvam os seus interesses. Teme o enfado acima de tudo, e Dorian Gray, enquanto cobaia psicológica para os seus jogos, providencia precisamente a diversão adequada a evitar essa maleita.

  Quanto mais reflecte sobre a sua beleza, mais Dorian mergulha num caminho de narcisismo. Com a sua beleza, aliada à sua condição privilegiada na sociedade, nada está fora do seu alcance. E quando numa resposta inexplicável a um seu desabafo do desejo de permanecer jovem para sempre, se apercebe que a obra-prima de Basil, um retrato que pintou de si, começa a envelhecer em seu lugar, vislumbra um leque de novas possibilidades. Não haverão rugas de preocupação, tristeza, ou os simples sinais do envelhecimento. Mais do que isso, o quadro parece ter-se tornado um espelho da sua própria alma. As consequências das escolhas que efectuar reflectir-se-ão neste, e não em si. Perante a escolha de o utilizar como uma forma de vigiar a integridade da sua alma, ou um instrumento que possibilite uma absoluta impunidade, opta por esta última. Guiado pelo pecado da vaidade, dedica-se a explorar exaustivamente todas as possibilidades que a vida oferece, embarcando num conjunto de comportamentos sórdidos. Mas nem por isso se torna completamente indiferente à opinião social, pelo que o procura fazer de forma discreta. Esses comportamentos, que resultam numa influência corruptora para quem o rodeia,  nunca nos são completamente descritos, mas sobretudo sugestionados. Com a reincidência, começam a surgir boatos sobre o seu estilo de vida, e de como vendeu a sua alma ao diabo a troco da eterna juventude.
  Oscar Wilde não nos apresenta o percurso da personagem como algo de inevitável. Existe uma escolha (parte consciente, parte inconsciente), do destino a dar à sua vida. Se por um lado as perspectivas do mundo de Lord Henry são um verdadeiro canto da sereia, a Basil (que acalenta sentimentos por Dorian que vão além da amizade), crente numa beleza interior de Dorian tão grande como a exterior, cabe o papel de sua consciência. Quando a estória encontra o seu desfecho (que não desilude), descobrimos finalmente se o destino reservado ao protagonista será trágico, redentor, ou simplesmente a impunidade. O final comporta uma moral, mas que irá variar de leitor para leitor, consoante o tipo de pessoa que seja. Era esta a convicção do próprio autor.

  Irlandês de nascimento, Oscar Wilde (1854-1900) viveu em plena era vitoriana e destacou-se no panorama cultural londrino sobretudo pela sua obra como dramaturgo e poeta. Para além da sua obra, seria recordado pela sua homossexualidade, exposta publicamente num processo que conduziu ao seu encarceramento, e que em muito contribuiu para a sua prematura morte. Integrante do movimento estético a determinado ponto, faz em O Retrato de Dorian Gray (o único romance que escreveu), um tratado sobre a importância da aparência na sociedade, e no confronto entre estética e ética qual deve ser preponderante. Foi na época alvo de crítica em razão de alguns dos comportamentos que a história incluía, considerados debochados. A sua escrita é muito visual (provavelmente devido à sua formação teatral), e toma grande atenção à descrição dos pormenores, sobretudo das coisas belas. A espaços, pode ser algo desmotivador, como quando enumera os diferentes interesses que o seu protagonista vai tendo (ourivesaria, roupa, entre outros). Trata-se de uma leitura agradável, que ainda hoje estimula a reflexão, mas que inevitavelmente perde uma significativa parte do seu impacto em razão de um background cultural e social  que é hoje completamente diferente.

Classificação: 7,5/10 - Consegue explorar a interrogação se a beleza é uma benção ou uma maldição, sem deixar de criar uma obra de ficção envolvente.

"Não existe livro moral ou amoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo."
                                            Oscar Wilde 

Título: O Retrato de Dorian Gray
Original: The Picture of  Dorian Gray
Autor: Oscar Wilde
Tradução: Maria de Lourdes Sousa Ruivo
Biblioteca Visão, 2000
Páginas: 256

terça-feira, 2 de novembro de 2010

D. Amélia - Isabel Stilwell


  Isabel Stilwell recria neste romance a vida da última rainha de Portugal, D. Amélia (1865-1951). Cobrindo a totalidade da sua vida, e predominantemente através da perspectiva pessoal da própria Amélia, o livro tem particular incidência sobre o período do seu crescimento em França (após o regresso familiar do exílio inglês), e os anos de casamento com D. Carlos. De forma mais sucinta, refere igualmente o período subsequente ao regicídio, que haveria de culminar em novo exílio (realidade que marcou a sua vida), e que a acompanhou até à sua morte.

  Através das suas vivências contactamos com um período tumultuoso da história europeia, no que ao término ou sobrevivência de monarquias se refere. Primeiro, com o clã Orleães, quando o seu pai regressa a França na esperança de reinstituir a monarquia que havia terminado com o seu avô, ensejo que nunca alcançaria. É com Amélia, a filha mais velha, que o Conde de Paris partilha as suas convicções e visões para o futuro de França, sobre a égide de uma monarquia constitucional. É com Luís Filipe que Amélia forma a convicção do que um rei deve ser, sempre tendo como fundamental a noção de dever para com o seu povo. Acompanhamos a sua infância, de uma criança séria e contida, sempre preocupada com o que é esperado de si, e decidida a não desapontar o seu ídolo, o pai. Com uma família unida (facto a que não era alheia uma propensão pelo casamento com primos direitos), é difícil a D. Amélia deixar para trás tudo o conheceu quando chega o momento do seu casamento.

  A sua nova vida tem início aquando do seu casamento com o príncipe herdeiro de Portugal, de seu garboso nome Carlos Fernando Luís Maria Vítor Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis José Simão de Bragança Sabóia Saxe-Coburgo-Gotha, a partir do qual o nosso país seria a sua nova pátria. Apesar de uma aliança entre duas casas reais, este casamento foi também um casamento por amor. As elevadas expectativas que tinha para uma vida em comum foram inicialmente cumpridas, talvez mesmo excedidas. Mas o passar dos anos haveria de trazer um fosso crescente entre ambos, à medida que deixava de reconhecer o Carlos que conhecera e pelo qual se apaixonara, fraco perante os prazeres da vida, e negligente face às necessidades do povo. Não que D. Carlos tivesse apenas defeitos. Mas os seus dotes (nomeadamente diplomáticos) eram largamente superados pelas suas falhas. Acompanhamos a ascensão de Carlos ao trono após a morte do seu pai; a forma como a sua sogra, D.Maria Pia, se vingava no erário público das humilhações públicas a que era sujeita pelo marido; o nascimento e infância dos princípes herdeiros; e como a sua forte noção de dever se materializou numa impressionante, sobretudo para a época, obra social que visava a melhoria das condições de vida dos mais desfavorecidos. Conhecemos ainda o clima e os sinais que precederam a instauração da república no nosso país.

  As convicções de D. Amélia, ainda que sólidas, acabaram por sofrer a erosão de uma vida atravessada por dificuldades. Carlos, foi um marido desrespeitador, e que menosprezava aquele que podia ser o seu contributo para o seu reinado, mas a quem apesar de tudo amava. Mais preocupado com o prazer do que com o país, D.Amélia vivia no receio que os filhos seguissem o seu exemplo. Empenhou-se então em preparar o filho para ser o melhor rei possível, e um regente de que se pudesse orgulhar. Quando este lhe é roubado, desaparece com ele a sua razão de viver. D. Amélia sentia que o seu povo nunca a chegou a amar, apesar do seu esforço, e que via em si, e na sua família, apenas gente que espoliava o país de preciosos recursos financeiros sem em nada retribuir. D. Amélia é-nos apresentada como alguém de extrema dignidade, que foi-se tornando uma mulher amargurada e descrente, com a sua existência trespassada pelo adágio que um dia ouviu a uma tia: "a felicidade cobra sempre o seu preço".

  A autora consegue captar a essência de uma mulher nobre (em ambos os sentidos), mas que foi preparada para um mundo que rapidamente desaparecia. O seu colar de 671 pérolas, cada uma representativa de um dos bons momentos que viveu em Portugal. Voltou a Portugal uma única vez após o exílio (a convite de Salazar a quem muito admirava), em 1945.

  Isabel Stilwell, conhecida sobretudo pelo seu trabalho como jornalista (foi directora da Notícias Magazine), tem-se firmado nos últimos anos como autora de romances históricos: Filipa de Lencastre e Catarina de Bragança, igualmente sobre a vida de raínhas. As fotos que Isabel Stilwell incorpora no livro aumentam significativamente o seu impacto, na medida que temos uma consciência mais apurada de como o que estamos a ler teve uma base real. Muitas das cartas reproduzidas no livro são reais, já não sucedendo o mesmo com os diários, embora a autora se tenha baseado nos originais. A escrita de Stilwell é cuidada, mas perfeitamente acessível. Embora não seja um livro barato, dificelmente damos o nosso dinheiro por mal empregue.

Classificação: 9/10 - O livro consegue cumprir de forma sublime o objectivo a que se propõe.

Autora: Isabel Stilwell
Editora: Esfera dos Livros
Edição: Março 2010
Páginas: 554
Preço: 22€


quinta-feira, 18 de junho de 2009

Noites de Cocaína - J.G.Ballard



Charles Prentice é um jornalista britânico que ganha a vida a escrever sobre viagens. O tipo de pessoa que gosta de conhecer todos os lugares, mas não pertence a nenhum. Quando o seu irmão Frank, que havia assentado arraiais numa estância na Costa do Sol, é acusado pelo homicídio de cinco pessoas, o carimbo de Espanha é o próximo na colecção do passaporte de Charles.

Embora ninguém, polícia inclusive, pareça acreditar, Frank, que desempenha as funções de gerente do conceituado Club Nautico, insiste em manter uma confissão em que se assume como responsável pelo incêndio que provocou tantas mortes. Não só se mantém inflexível nesta matéria, como recusa contar ao irmão pormenores do que se passou ou a razão para o seu comportamento. Charles embora desconcertado, mas convicto da inocência do irmão, decide investigar por conta própria.

Na estância de Estrella del Mar, residentes maioritariamente britânicos vivem uma segunda juventude. Pessoas que atingiram o pico do sucesso cedo na vida vêem viver para aqui para finalmente fazerem tudo o que sempre quiseram. Representa um estranho contraste com os empreendimentos semelhantes que acabam por se caracterizar pela letargia constante e uma fobia do mundo exterior. Mas quando Charles mergulha mais profundamente neste mundo, apercebe-se que a expressão realizar todos os sonhos é encarada literalmente. Existem comportamentos que um outsider não consegue compreender. Como pessoas que assistem a uma violação e nada fazem. Existe uma relação sombria entre um tipo de criminalidade que oficialmente não existe e a própria vitalidade da comunidade. É esse enigma que Charles precisa de deslindar para descobrir o que aconteceu ao irmão.
Acaba por se envolver com uma antiga namorada do irmão e por conhecer Crawford, uma espécie de messias da mentalidade dominante e que representa a chave para ser aceite num mundo que até aí o parecia querer ver pelas costas. Com o tempo, Charles (e um pouco o leitor com ele) vai sendo assimilado por este mundo e acaba por tomar de certa forma o lugar do irmão. Acaba também, por ficar tão indiferente ao destino de Frank como todos os outros (embora não o consiga encarar).

Do (pouco) que li de Ballard, este romance não consegue ser tão incómodo como outras obras. Embora falando de como somos afectados pela violência e sexualidade, a perspectiva que nos fornece (para mim Ballard tem sobretudo a ver com analisar os instintos e emoções que movem o ser humano sob perspectivas diferentes da mainstream e normalmente mais sombrias) embora alternativa, não é brutal. Talvez ambígua seja a melhor forma de descrever. Para quem gosta de Ballard, provavelmente não achará este um dos seus melhores trabalhos. Mas para fãs ainda condicionais ou recém-apresentados, será uma aposta mais segura.

A vertente policial do livro, solucionada apenas no final, ajuda a equilibrar o prisma mais psicológico e sociológico da história. O final, embora moderadamente previsível, é bem conseguido em relação ao espírito da obra, e foi o suficiente para elevar uns furos a minha opinião global da mesma.

"Noites de Cocaína"
J.G.Ballard
Tradução de Mário Correia
Quetzal Editores
Maio,2003

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Os Pecados do Lobo - Anne Perry


Integrado na excelente colecção de policiais da Gótica "Nocturnos", a acção de "Os Pecados do Lobo", de Anne Perry, desenrola-se na Inglaterra Vitoriana e tem no detective William Monk a sua personagem principal. Monk é abrupto, inconveniente e sarcástico; ao fim e ao cabo, alguém que não é tido na melhor das contas. Mas é também extremamente inteligente e incansável a defender uma causa que considere justa, não hesitando em desrespeitar a maioria dos extremamente rígidos preconceitos sociais da época. Rege-se apenas pelos seus princípios pessoais, sem dar muita importância às consequências que possa sofrer. Embora seja o primeiro que leio, não se trata do primeiro livro da série. As constantes da mesma são um conjunto de personagens comuns e o contexto pessoal de cada uma. Os elementos mais relevantes dos mesmos são facilmente introduzidos (o caso de um anterior despedimento de Monk da Polícia e a amnésia de que sofre). Já o crime investigado neste volume, é autónomo e circunscrito ao mesmo, pelo que não é indispensável ler os volumes anteriores.

A enfermeira Hester Latterly (pertencente ao núcleo de personagens comuns), vê-se acusada do crime de homicídio por envenenamento, de uma sua doente que acompanhava em viagem. Os indícios encontrados apontam fortemente para a sua culpabilidade. Sabendo-se inocente, Hester tem também consciência que apenas um dos membros da família onde a vítima era matriarca, poderia ter tido os meios e oportunidade para cometer o crime, e ainda deixar provas incriminatórias contra si. Recorre à ajuda de Monk, e do advogado Oliver Rathbone, os quais, pelo passado que partilham, acreditam intransigentemente na sua inocência. São os três vértices de um triângulo amoroso subtil, que gera alguns dos momentos mais divertidos do livro.

O livro caracteriza-se essencialmente pela sua capacidade descritiva e pelo tom leve que, embora sem ter pretensões humorísticas explícitas, nos leva a viajar pelo mesmo com um sorriso nos lábios. As personagens, tanto principais como secundárias, estão bem conseguidas. Raramente se limitam a estereótipos. Mesmo as que não são exploradas a um nível mais complexo, conhecemos delas o suficiente para nos transmitir a sensação de que há mais nelas do que um primeiro olhar alcança. Levando o seu tempo a descrever cada uma das etapas da história, o ritmo da trama acaba por sair algo prejudicado. A descrição da estrutura familiar e dos rígidos padrões sociais em meados do séc.XIX é cativante sem ser exaustiva, limitando-se às exigências da história. O papel das mulheres na sociedade e como este se começava lentamente a alterar tem um destaque especial. Na guerra da Crimeia, onde Hester serviu como enfermeira, pela primeira vez as mulheres acederam à profissão de enfermeira por vocação, e não como um trabalho rebaixante reservado para quem esgotou outras alternativas. Neste confronto notabilizou-se a figura de Florence Nightingale, uma personalidade real que chega a ser integrada na história numa homenagem à importância dos seus feitos. Granjeou um respeito profundo dos seus contemporâneos que roçava a adoração, e foi fundamental para uma melhoria drástica dos cuidados de saúde que se prestavam, sobretudo aos mais pobres.

Enquanto tenta descortinar motivos no seio da família da vítima susceptíveis de impelir ao assassinato, Monk acaba muitas vezes em becos sem saída. Os avanços mais significativos na investigação do crime, sucedem numa fase já adiantada do livro. Em resultado disso, os acontecimentos acabam por se precipitar de forma um pouco atabalhoada. É esse twist final que revela as motivações subjacentes ao crime e, embora seja algo forçado e não totalmente surpreendente para quem esteja habituado a este tipo de histórias, não prejudica a sensação de agradabilidade que ler este livro nos transmite.

domingo, 7 de junho de 2009

A Canção de Kali - Dan Simmons


Robert Luczack é um jornalista americano, que viaja até Calcutá incumbido de redigir um artigo sobre um novo poema que está a intrigar o mundo literário. Consigo viajam também a sua mulher Amrita, e a bebé de ambos, Victoria. Amrita, embora nascida na Índia, não visita o país desde criança. Atribuído ao poeta Das, o poema em questão é controverso. Embora comprovadamente recente, todos os indícios apontam para a morte do seu autor à cerca de dez anos atrás. À medida que investiga a veracidade do manuscrito, Robert descobre estar efectivamente perante o trabalho de Das, mas também que os rumores da sua morte não foram exagerados. O conteúdo deste novo poema diverge do seu trabalho anterior e remete incessantemente, em termos grotescos, para Kali, a deusa da Morte. Preso nesta contradição insanável, o único caminho para descobrir a verdade parece ser através de uma seita conhecida como o culto de Kali, a qual parece ter os seus próprios intentos para o jornalista. Com cada passo que dá, mergulha cada vez mais num emaranhado de crenças que a sua mente lhe dizem impossíveis, mas que sente cada vez mais como reais. Quando encontra finalmente alguém com uma explicação para o ressurgimento de Das, fica hipnotizado enquanto escuta o seu testemunho do que presenciou. Apercebemo-nos que nós também. Essa narrativa dentro da estrutura principal do romance é particularmente bem conseguida e, para mim, o ponto em que o livro me conquistou definitivamente.

A cidade de Calcutá é a personagem principal da história. É a sua natureza que nos transmite uma atmosfera de desconforto que vai em crescendo até atingir um terror palpável. Dan Simmons descreve um lugar maligno; submerso na imundice e miséria. Os prédios encavalitam-se, as pessoas também. Tudo fede permanentemente a uma mescla de lixo, doença e excrementos. Calcutá está para além da salvação, para além de piedade. Nada mais é que uma chaga abjecta na humanidade. Deveria ser varrida da face do planeta por uma violenta explosão; uma nuvem em forma de cogumelo com que Robert chega a sonhar, que expurgasse o mundo inteiro desse mal.

Embora integrando elementos sobrenaturais na história, os verdadeiros contornos dos mesmos nunca são completamente explicitados. Na minha opinião, é essa ambiguidade a grande força do livro. Como nunca sabemos até onde chega o toque de Kali, compreendemos o desespero do protagonista para quem nada é já completamente seguro, e que não sabe como combater algo que está longe de compreender por inteiro. Para quem estiver à espera de uma explicação clara para o como e porquê de tudo o que é descrito na história, pode sentir-se defraudado.

Quanto mais avançamos no livro, mais convictos ficamos de que o seu final será de alguma forma trágico. Esta é uma história sobre o Mal. Não é sobre uma luta entre o Bem e o Mal. Somente sobre o Mal; até onde nos pode inquinar e se é possível preservar um vislumbre de esperança no nosso íntimo. Um outro desfecho não respeitaria a natureza da história.

"A Canção de Kali"
Dan Simmons
Tradução de João Barreiros
Edições Saída de Emergência
Setembro, 2005