quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Dan Brown, o McDonald's da literatura



     Eu ainda sou do tempo em que o McDonald's existia em Lisboa e pouco mais. Um almoço no dito cujo, chegava a ser descrito na escola com honrarias de ponto alto de uma viagem ao estrangeiro. Quando começaram a aparecer novos restaurantes da marca, era normal vê-los cheios com famílias inteiras em refeições de fim-de-semana, festas de aniversário e almoços de negócios. Depois, entrou na nossa rotina e generalizou-se. Passou a moda e surgiram os sucedâneos. Ainda hoje é um sítio onde um grande número das pessoas vai comer de tempos a tempos. Um pequeno guilty pleasure. Surgiram nessa altura os puros e castos. Gente que jura a pés juntos que nunca comeu aquela porcaria. Outros comeram, mas entretanto tiveram uma epifania, e antes morrer a tragar McDonald's novamente. Cada um é livre de comer o que quer. E houve evidentemente, muita gente que nunca sentiu o apelo do ícone americano da fast food. É precisamente por ser algo tão natural, que não sentem a necessidade de o anunciar ao mundo como se tivessem salvo uma vida. Mas o que é que esta conversa mal enxertada tem a ver com o Dan Brown?

    É que é precisamente este tipo de comportamento, de que me recordo quando penso nas reacções manifestadas em relação a "O Código da Vinci", durante os anos que mediaram a edição deste e de "O Símbolo Perdido". Aquando do seu lançamento, gerou um fenómeno ainda hoje difícil de igualar no mercado editorial nacional, vendendo mais de 500 mil exemplares. Pessoalmente, acho o "Código da Vinci" um bom livro. Lido compulsivamente, cumpriu plenamente a função recreativa que dele esperava. Não vai ficar para a história como uma obra maior da literatura, mas também não me parece esse o seu lugar ou pretensão. Parece-me que a maior fragilidade, não do livro, mas da obra de Dan Brown, é a estrutura narrativa. Porque é sempre a mesma. O número de personagens principais; os ardis utilizados para desviar a atenção do verdadeiro vilão; a dinâmica romântica dos casais principais; até a forma como a montanha acaba por parir o rato nas conspirações, fruto de um indivíduo tresloucado e não das instituições milenares. E como cereja no topo do bolo, há aquele momento aerodinâmico no "Anjos e Demónios", a que os americanos chamariam jump the shark (quem leu o livro sabe de certeza ao que me refiro), que de tão rídiculo nos impossibilita qualquer hipótese de levar a sério o livro.

    Entretanto, parece que ninguém tinha lido o livro. Que se tornou um fenómeno de geração espôntanea. Um livro que se via por todo o lado, escolha de eleição para oferta de Natal e aniversários, tornou-se no manuscrito maldito. Na crítica literária, é recorrentemente nomeado como um exemplo intragável de livro ou simplesmente tratado com a condescendência reservada ao trabalho de um amador esforçado. Critica-se a falta de exactidão histórica do mesmo e a falta de densidade dramática. São verdade ambas as críticas. A inexactidão de factos não me incomoda particularmente porque ficções históricas não me parecem o melhor meio de adquirir informações fidedignas acerca de que assunto for, para além de algumas noções gerais. É verdade que existem algumas excepções, mas que servem sobretudo para confirmar a regra. Quanto à densidade dramática, existem de facto melhores alternativas. Ide ler os clássicos. Mas nem só de Tolstoi e Balzac se alimenta o intelecto (acho eu). Tal como no cinema ou música, na literatura existem alternativas para diversas necessidades e estados de espírito. A literatura de aeroporto também serve o seu propósito. E para quem enquadra "O Código da Vinci" nessa categoria, é no contexto da mesma que a deve avaliar. É perfeitamente normal que muita boa gente o ache pura e simplesmente lixo. Mas parece-me difícil, por qualquer cânone, considerá-lo como do que pior surgiu nos escaparates das livrarias. Quanto mais não seja, porque na enxurrada de thrillers esotéricos que tentaram capitalizar o seu sucesso (embora um efeito colateral pelo qual não pode ser responsabilizado directamente, talvez este sim, seja o pior malefício que se lhe pode apontar), existem muitos candidatos melhor qualificados para esse papel.

    Entretanto, foi lançado "O Símbolo Perdido" e os ânimos serenaram. Afinal de contas, o livro está a vender bem e não parece ser uma boa altura para as vozes críticas se manifestarem. Se alguém conceituado admitir ler Dan Brown (#469), provavelmente até terá direito a ser louvado pelo ecletismo que caracteriza as suas leituras. Não sou um defensor incondicional de Brown. Li quatro dos seus livros, sendo que um deles, "Fortaleza Digital", pareceu-me um simples desperdício de papel. Para ser sincero, duvido que possa retirar mais alguma coisa da sua escrita. Tenho uma curiosidade reduzida pelo seu mais recente romance, e a possibilidade de o ler está subordinada a um eventual negócio de ocasião. Simplesmente, e sendo verdade que a opinião é totalmente livre, não perder o sentido de proporção quando se opina nunca fez mal a ninguém.

1 comentário:

JM disse...

Confesso que foi com imenso prazer que li a tua reflexão. Concordo com praticamente tudo o que dizes e subscrevo a máxima de que cada um deve ler aquilo que considerar que mais prazer lhe dará. A propósito desta questão da "liberdade" de escolha literária também deitei umas palavras cá para fora (http://favouritereadings.blogspot.com/2009/11/duras-verdades-ou-complexos-de-um.html) e foi em boa hora que li as tuas.
Cumprimentos!