Gasto mais dinheiro em livros do que devia, e compro-os muito mais rápido do que os consigo ler. Faço-o por um hábito de coleccionismo e pela expectativa que sinto ao ter aquele livro na estante, aguardando a oportunidade ideal para ser lido. Encontro o mesmo prazer em descobrir um livro comprado anos atrás, uma obra de que não me recordo a última vez que nela pensei, que encontro numa compra mais recente. Minto. Sinto um prazer ainda maior. Porque olho para as minhas estantes como um reduto em que guardo alguns dos meus bens mais valiosos. Ao percorrê-las, revisito as circunstâncias e motivos que me convenceram a comprar cada um dos seus ocupantes. É nessas alturas que me apercebo de como a minha biblioteca se foi tornando uma extensão da minha personalidade.
Ao adoptar este comportamento à revelia de qualquer racionalidade económica, acabo por sentir a premência de alcançar alguma forma de equilíbrio com a minha consciência. A solução que encontrei, é procurar sempre os melhores negócios possíveis. Quando os encontro, a convicção de que dificilmente encontrarei uma oportunidade semelhante, constitui um argumento difícil de rebater. No seguimento desta lógica, interiorizei nos últimos três meses quão vulnerável sou a um tipo de promoção específica. Começou, como começa sempre, com um negócio de ocasião.
Os hipermercados Continente, simpáticos bastiões do capitalismo, organizaram a campanha best-seller. Na compra de um conjunto de packs seleccionados, apenas pagávamos o preço de um de dois livros. Ora os packs de Daniel Silva e Haruki Murakami caíam que nem ginjas no meu pecúleo literário, provocando baixas há muito ansiadas na minha lista de desejos. Para além disso, senti que era minha obrigação cívica adquiri-los enquanto um cidadão que pretende contribuir, ainda que modestamente, para a revitalização da nossa economia numa época de crise.
O pack de Daniel Silva era constituido por "O Assassino Inglês" e "O Criado Secreto", precisamente os únicos livros do autor publicados em português que me faltavam. Dos muitos autores de espionagem a que já foi comparado, o que Daniel Silva mais me recorda é Frederick Forsyth (autor de "O Chacal" e "O Quarto Protocolo"), mas numa encarnação actualizada. Tem uma fórmula que obedece a critérios bem definidos, apostando na riqueza de pormenores dos contextos e competente gestão do suspense para enriquecer a narrativa. Ao escolher Gabriel Allon, um espião israelita, como protagonista de uma boa parte dos seus thrillers, Daniel Silva descobriu um filão inesgotável de estórias. Entre repercussões da perseguição a que os judeus foram sujeitos na II Guerra Mundial, e os conflitos em que Israel se encontra actualmente envolvida no Médio Oriente, matéria prima é coisa que não lhe falta. A Bertrand poderia era tratar com mais respeito esta série e quem a lê. Existe uma sequência na mesma que tem sido ignorada. No primeiro lançamento ainda se compreende. Provavelmente estavam a tentar recriar um sucesso literário internacional. Mas a partir do momento em que concluiram que a fórmula funcionava no nosso mercado, não compreendo porque motivo a sequência de lançamentos parece continuar a ser decidida de forma aleatória, e não na ordem cronológica. Acabam por ser desvendados prematuramente, determinados elementos da evolução pessoal das personagens que conduzem a efeito spoiler perfeitamente evitável.
O pack de Haruki Murakami oferecia na compra de "A Sul da Fronteira, a Oeste do Sol", o livro "Dança, Dança, Dança", continuação de "Em Busca do Carneiro Selvagem". Dos livros de Murakami que conheço (para além deste, "Kafka à Beira-Mar" e "Norwegian Wood"), foi o que mais gostei. A escrita de Murakami tem uma assinatura muito própria, assente num plano parcialmente abstracto e que se mantêm constante de livro para livro. Não ser um escritor versátil no tipo de atmosferas que cria, não constitui um problema porque ninguém mais cria atmosferas iguais às suas. Como já tinha o primeiro livro, aproveitei por fazer uma compra de Natal antecipada por um preço em conta. E consegui o "Dança, Dança, Dança" por 13,50€ quando o seu preço é de 18€ mesmo com 10% de desconto. Por uma questão prática, darei um pequeno salto temporal para maleitas futuras. Isto porque a desgraça em Murakami não se resumiu a esta compra. Na fnac online, aproveitando a pré-compra de "Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo", recebiamos de oferta "After Dark, Passageiros da Noite". As obras de Murakami têm sido particularmente recorrentes neste tipo de promoções. Aliás, este foi um ano particularmente profícuo em sinergias entre a minha biblioteca e a obra do escritor nipónico. Já tinha aproveitado uma outra promoção para comprar o ensaio "Underground - O Atentado de Tóquio e a Mentalidade Japonesa" editado pela Tinta da China.
Existe um aspecto que me parece curioso quando se fala de Murakami. Foi um autor que demorou a chegar a Portugal. Recordo-me de ouvir diversas intervenções em que diferentes intelectuais referiam com entusiasmo o fenómeno Murakami como o que de mais original tinha surgido no panorama literário internacional. Chegou a ser mencionado como exemplo do atraso com certas obras significativas chegavam ao nosso mercado. Quando finalmente chegou, foi-se tornando paulatinamente um sucesso de vendas. E começámos a observar um silêncio cada vez maior da crítica. É verdade que os seus livros não são normalmente alvo de críticas negativas. Simplesmente não lhes é dada grande atenção. Deixou de ser um segredo bem guardado, apenas ao alcance daqueles cujo conhecimento do mercado vai para além das nossas fronteiras, tornando-se um produto de massas. Há quem se refira ao mesmo como o Dan Brown dos intelectuais. Outra crítica recorrente é o facto de ser um dos escritores japoneses mais ocidentalizados. Parece-me uma crítica pertinente apenas se alguém o referir como um paradigma do estilo dos autores nipónicos. Não é difícil entender o motivo porque os traços culturais japoneses, ainda que mitigados, parecem exóticos aos olhos de alguém tão distante e desconhecedor dessa realidade. Pode muito bem ser, que seja precisamente o facto de estar a meio caminho entre as culturas ocidental e oriental, que o torna tão apelativo a ambas.
"O Assassino Inglês" + "O Criado Secreto" de Daniel Silva por 16,16€
"A Sul da Fronteira, a Oeste do Sol" + "Dança, Dança, Dança" de Haruki Murakami por 13,50€
"Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo" + "After Dark, Passageiros da Noite" de Haruki Murakami por 13,50€
2 comentários:
Adorei o argumento da "revitalização da nossa economia numa época de crise". Já anotei para o caso de ser necessário no futuro :D
É sempre um prazer ler as tuas crónicas/divagações. Identifiquei-me muito com a facto de teres dito que a tua estante se assemelha a uma extensão da tua personalidade! Sinto-me exactamente assim relativamente à minha.
Bjs***
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