Num pequeno castelo de caça na Hungria, um coronel envelhecido aguarda durante 40 anos o reencontro com Konrád, o seu outrora inseparável amigo. Sabe que antes de morrer se hão-de encontrar novamente, e é a expectativa desse momento que o prende a este mundo. Num ritmo pausado, mas nunca enfadonho, conta-nos a história da sua vida. Como foi crescer em condições privilegiadas naquela época, e em como essa amizade com alguém no extremo social oposto se inicia e aprofunda. A separação de alguém que era como um irmão, e a morte da sua mulher, foram dois acontecimentos que o marcaram profundamente. E de alguma forma parecem estar ligados entre si. Perdeu o prazer pela vida e paira como um espectro, ruminando incessantemente o passado e esperando, sempre esperando. Essa ligação vai-nos sendo confidenciada ao longo da história. Mas não se pense que é a força motriz do livro. A escrita de Márai é muito boa. Deslizamos por ela, desfrutando o prazer que nos proporciona, e quase esquecendo o papel que cada capítulo desempenha na história. A recriação do ambiente da época é outro ponto forte do livro. Durante os quarenta anos que permeiam a história, o Império Austro-Húngaro entrou em declínio. A realidade opulenta e orgulhosa que conhecemos numa primeira fase, apoiada nas suas raízes militares e aristocráticas, desapareceu entretanto. E no novo mundo que se lhe seguiu, não parece haver lugar para Henrik e Konrád.
"As Velas Ardem até ao Fim" acaba por ser essencialmente um monólogo, pois mesmo após o tão aguardado encontro, continua a ser o Coronel a fazer as despesas da trama. A sua introdução permite despoletar emoções mais veementes no espírito do nosso narrador, mas Konrád destaca-se mais pelo que não diz, pela importância dos seus silêncios.
Um livro pequeno, que se lê em poucas horas, mas cuja marca da sensibilidade e mestria com que foi escrito, perdura no nosso espírito. Uma relação de amizade pode ser o vínculo mais nobre e profundo entre duas pessoas. Tão forte como um vínculo de sangue; tão profundo como um amor romântico. Foi a amizade entre ambos que definiu a medida dos homens que ambos seriam. Márai aborda as subtilezas de uma amizade. Da confiança e lealdade que a caracterizam; e da sua vulnerabilidade, pois não há ninguém de quem esperemos mais.
Sandor Márai teve bastante sucesso na época em que viveu, até ver os seus livros proibidos na sua Hungria natal, na altura sob o jugo do comunismo. O seu trabalho acabou por cair no esquecimento, e apenas recentemente tem sido redescoberto e aclamado. Suicidou-se em 1989, na Califórnia.
"As Velas Ardem até ao Fim"
Sandór Márai
Tradução do húngaro de Mária Magdolna Demeter
Dom Quixote
1ªEdição - Outubro 2001/19ªEdição - Abril 2009
Classificação: Muito Bom. A escrita de Márai é excelente, e transforma uma reflexão subtil sobre a amizade num livro marcante. Noutras mãos, facilmente resvalaria para a banalidade.
1 comentário:
Um dos mais intensos que li nos últimos tempos. :)
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