Durante 2010 não houve lugar a listas de leituras ou compras. Não saberia recitar de memória a maior parte dos livros que li no ano passado, e acerca de muitos ficaria na dúvida se os li nesse ou outro ano. Mas algumas leituras marcaram os doze meses anteriores pelos mais diferentes motivos:
Somos o Esquecimento que Seremos e Não Matem a Cotovia, por conseguirem captar em palavras algo de nobre do ser humano. E por o fazerem com genuinidade, sem recorrerem a exageros narrativos ou descritivos. Fortemente baseados nas experiências pessoais dos próprios autores, ambos nos conduzem pela importância do amor entre um pai e os seus filhos; e de como quando este é um bom homem, se torna a medida pela qual os seus sucessores se avaliarão. Mostra-nos igualmente que tentar fazer o que achamos certo nem sempre conduz a um final feliz; e porque ainda assim muitos acreditam valer a pena viver segundo esses princípios.
Shantaram, uma obra auto-biográfica romanciada, porque a vida de Gregory David Roberts é um daqueles casos em que a realidade supera a ficção. Maioritariamente passado na Índia, existe de tudo um pouco nesta odisseia: violência, miséria, crime, amor, obsessão, e algumas personagens memoráveis. Roberts guia-nos através do submundo de Bombaim ao longo de 900 páginas, e apesar da sua extensão, é com tristeza que chegamos à última página. O adágio "toda a gente tem um livro dentro de si" surgiu devido a casos assim.
D. Amélia pela surpresa que constitui para mim. Lido por recomendação, confesso que contrariei os meus preconceitos (uns fundados, outros nem por isso) acerca de alguns autores portugueses, nomeadamente no que ao registo de romances históricos se refere. Instigado pelo alarido acerca do regicídio, proporcionou-me uma perspectiva interessante sobre o período final da monarquia em Portugal. Não uma perspectiva imparcial, ou o mais completa possível. Mas antes humana, que tenta recriar os estados de alma de uma das suas principais intervenientes.
Uma conspiração de estúpidos fez-me ir às lágrimas de tanto rir. Não imaginava ao ler as primeiras páginas, embora cómicas, que pelo final do livro teria mergulhado num mundo em que a idiotice é o valor dominante e surge instituída de uma simetria que pauta a existência do mesmo. O epicentro, e simultaneamente expoente máximo deste, é Ignatius Reilly, uma das personagens mais geniais que conheci. Sem ser imbecil no sentido mais clássico do termo, funciona numa frequência que é diferente do resto da humanidade, e lhe confere a capacidade de conduzir quem o rodeia à insanidade. O prazer da leitura foi tanto maior, porque já conheci o meu Ignatius (embora na versão feminina), e sei agora que estas pessoas, embora raras, existem mesmo fora da ficção. E sim, mesmo quando têm um excelente coração, possuem o condão de nos levar à loucura.
Compreende-se porque é que As Memórias Póstumas de Brás Cubas é considerado por tantos uma das maiores obras primas da literatura brasileira e da ficção escrita em português. Não vou mencionar a história que conta porque não é o que mais importa. O que importa é que Machado de Assis tem um tal dom para a escrita, que se tivesse escrito sobre o acto de cortar as unhas, muitos teriam lido essa prosa com gosto (o próprio incluído).
Por último, Contos Completos I de John Cheever que me encheu as medidas. Não é raro perdurar após a leitura de contos a sensação de lamento por as ideias que abordam não terem sido mais desenvolvidas. John Cheever consegue a quase perfeição entre o tamanho do conto e o que precisava ser dito. Consegue captar o espírito de uma época da América, através do mosaico que este conjunto de contos (todos no mesmo registo) nos apresenta. Perdura o travo de que a caneta do autor foi pousada nem uma palavra a mais ou a menos antes.
A memória privilegia as leituras mais recentes, pelo que muito provavelmente outras obras igualmente marcantes ficaram esquecidas. Mas pouco importa em que ano um bom livro tenha sido lido. Importa que tenha sido lido.
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